Produzir romances que apelassem aos leitores de Fleming e ao público de cinema era a determinação da Glidrose Publications e dos editores britãnicos e norte-americanos quando inauguraram a nova série de títulos sobre o personagem. Depois de alguma experimentação com conteúdo, Gardner produziu o primeiro Bond da nova safra a lograr esse objetivo: “Vencer, Perder ou Morrer”, um épico de 007 que faz concessões ao cinema, mas está repleto de conexões com o passado do herói. A mais óbvia é o background militar do protagonista, que tem grande relevância neste argumento. Nos capítulos iniciais, o agente está de volta ao serviço ativo da Marinha Britânica (de fato, é promovido de “Comandante” a “Capitão Bond”). Trata-se de outra maquinação de “M”, que quer ter seu homem de confiança infiltrado no exército bélico Land Sea ‘89, marcado para ocorrer a bordo do porta-aviões HMS Invincible. O treinamento envolverá oficiais ingleses, norte-americanos e soviéticos (quando a obra foi escrita, a Rússia estava em processo de abertura, sob licença de Mikhail Gorbachev).
Com os “vermelhos” descartados como vilões, Gardner, a imitação de Fleming, recorre a uma organização fictícia e “apolítica” como agente do mal: B.A.S.T. (Contração de “Brotherhood Of Anarchy and Secret Terror”, ou “Irmandade da Anarquia e do Terror Secreto”), chefiada pelo enigmático Bassam Baradj. Conhecido agitador e terrorista internacional, Baradj tem o plano mirabolante de render as três super-potências envolvidas no Land Sea ‘89 ao sequestrar seus líderes – Bush, Thatcher e Gorbachev -, que, segundo fontes seguras, terão uma conferência a bordo do HMS Invincible no clímax dos exercícios. O método de B.A.S.T. para subjulgar os militares e ter acesso aos estadistas é aviltante – mas não é mais absurdo que um roubo ao Fort Knox ou o envenenamento das reservas naturais da Inglaterra por um grupo de garotas: aplicar um “Boa noite, Cinderela” na tripulação – inclusive, nos três governantes -, antes de tomar o controle do porta-aviões e exigir resgates astronômicos.
“Vencer, Perder ou Morrer” atualiza o contexto da saga literária para os anos 1980 com grande habilidade. Esta diretriz, estabelecida nas origens da Era Gardner, foi seguida em “Licença Renovada” e abandonada logo a seguir. Para um “purista” flemingiano, o encontro de 007 com os líderes da Inglaterra, EUA e Rússia é um momento de puro deleite. É injusto imaginar que o próprio Fleming, sempre preocupado em reposicionar 007 de acordo com as mudanças na política internacional, apreciaria a ironia desta passagem:
“Bond acenou para o Sargento.
– É a qualquer momento. – disse, e mal proferira estas palavras, ouviu passos na parte sem passadeira do corredor que dava para os camarotes destinados aos VIPS. (…).
O Contra-Almirante parou à frente de Bond.
– Primeira-Ministra. – disse à senhora Margaret Hilda Thatcher, vestida elegantemente.
– Gostaria de lhe apresentar o Capitão James Bond, responsável pela segurança do Steward’s Meeting.
A Primeira-Ministra sorriu e apertou firmemente a mão de Bond.
– É um prazer voltar a encontrá-lo e parabéns por sua promoção. – virou-se para Walmsley. – O Capitão Bond já somos velhos amigos. (…).
O Presidente George Herbert Walker Bush, rodeado por seus agentes dos Serviços Secretos – Joe Israel, Stan Hare e Bruce Trinble – e acompanhado de um homem baixo com uma pasta presa por uma corrente ao pulso, tinha sido recebido na entrada do corredor por Walmsley. O Presidente era alto, sorridente, grisalho e tinha uma expressão franca.
– Capitão Bond. – disse, ao reconhecer Bond, depois do Almirante o ter apresentado.
– Sei que estou em boas mãos. Um grande amigo meu contou-me o quanto o Senhor já ajudou e creio que temos outro conhecido em comum.
– Provavelmente, temos, Sr. Presidente.
– Sim. Felix serviu sob meu comando quando eu estava no DCIA. Bom homem. Espero voltar a vê-lo, Bond, mas sabe o quanto estamos apertados de tempo. Gostei de vê-lo.
(…).
Mikhail Serjeyevich Gorbachev, Secretário Geral do PCUS e Presidente do Soviete Supremo, vestia um sobretudo de pêlos de camelo que não havia sido comprado em uma GUM. (…).
– Capitão Bond, tenho muito prazer em conhecê-lo. Espero que conviva com os que tomam conta de mim em um verdadeiro clima de Glasnot. – o aperto de mão do homem baixo era positivamente de partir os ossos e Bond ficou sem fala, enquanto o Russo passava por ele em direção a seu camarote.
– Ora, essa. – murmurou Harvey. – não trouxe a Raisa. (…).
– Seja injusto, Harvey. O Presidente não trouxe Barbara e a Sra. Thatcher veio sem o Denis. É aceitável.”
“Vencer, Perder ou Morrer” (Capítulo 14 – Steward’s Meeting)
Obviamente, as exigências mercadológicas por trás da criação dos novos enredos ainda se fazem notar – em duas passagens do livro, Bond pilota caças de guerra em combates aéros que dariam ótimas sequências de filmes (quando, na obra de Fleming, não há referência alguma a essa aptidão do herói); não obstante, esse tipo de upgrade é viável na trajetória de Bond – senão um adendo lógico: Por ser um ex-militar (ainda que da Marinha) permanentemente na ativa é absolutamente aceitável que 007, em certo ponto da carreira, tenha aprendido a lidar com aviões.
As Bond Girls de “Vencer, Perder ou Morrer” também são memoráveis: Clover Penington é a traidora do serviço de B.A.S.T. Mas seu affair mais significativo é com a espiã Beatrice Maria Da Ricci, que auxilia o agente em uma conturbada passagem pela Itália. Em uma cena interessante, que oferece um viés tridimencional do protagonista, Bond divide, com Beatrice, algumas recordaçõs de sua infância (particularmente, sobre a noite em que os pais o presentearam com uma espingarda de pressão, dias antes de morrerem em um acidente de alpinismo). No meio da novela, Ricci tem uma “falsa morte”, o que lança Bond em uma crise nervosa (perfeitamente justificável, já que não é habitual o agente abrir-se com as suas garotas) – um mecanismo de “humanização” de 007 mais eficaz que toda a intriga de “Sem Acordos, Mr. Bond”, supostamente concebida para injetar realismo a saga literária. Ricci foi uma criação tão eficaz que Gardner a reutilizou em outros de seus livros, “Filhos Do Apocalipse”, publicado alguns anos depois.
O único equívoco do romance é esgotar o conceito de B.A.S.T – que, com o benefício de mais alguns enredos, seria uma boa substituta para a SPECTRE no imaginário de 007. Bond elimina Bassan Baradj em um duelo em Gibraltar, após frustar os planos da organização e resgatar Bush, Thatcher e Gorbachev. Um bom momento literário de 007. E um ótimo filme da EON, caso seja adaptado para as telas algum dia (com o devido reposicionamento ideológico, já que tem raízes firmemente plantadas na política internacional dos anos 1980).
“Sexo, Glamour & Balas” de Eduardo Torelli.