Ao publicar seu terceiro Bond, em Julho de 1983, Gardner começou a mesclar elementos de sua própria literatura ao imaginário do herói. Adepto de tramas de espionagem com um pé no mundo real, o autor considerava os livros de Fleming “exercícios de fantasia”. “Missão No Gelo”, portanto, rompeu com o estilo de “Licença Renovada” e “Serviços Especiais”: trata-se de um enredo de mistério, com poucas concessões à formula tradicional de Fleming, e com tantas reviravoltas que é fácil ficar perdido na narrativa.
O ponto de partida é um ataque ao Complexo Militar Comercial da República Popular Socialista da Líbia, com um saldo de 140 mortos. Outros atentados ocorrem em Berlim Ocidental, Bonn, paris, Washington, Roma, Nova York, Londres, Madri, Milão e em vários pontos do Oriente Médio. As ações são coordenadas pelo Exército da Ação Nacional Socialista (EASN), liderado pelo fanático Conde Konrad Von Glöda (que se julga o sucessor de Hitler). A organização representa um problema para o mundo civilizado, em processo de distenção política.
A base de operações de Glöda é o “Palácio de Gelo” (uma casamata localizada no Círculo Ártico e dentro da fronteira russa). Em poucos anos, o EANS comprou briga com muita gente, seus alvos principais são os comunistas, mas o grupo também promove atividades anti-semitas nos EUA e na Europa. Em vista disso, as forças de inteligência soviética, norte-americana, inglesa e israelita se unem contra o inimigo comum, instituindo a “Operação Quebra-Gelo”. Os “cabeças” da missão são James Bond, o agente norte-americano Brad Tirpitz, o soviético Kolya Mosolov e a espiã israelense Rivke Ingber.
“Missão No Gelo” tem uma dinâmica interessante nos capítulos que mostram a integração entre esses personagens, antigos rivais que, por força das circunstâncias, precisam trabalhar juntos. 007 e Rivke se entendem muito bem e começam um affair nas preliminares da missão, mas há muitas suspeitas quanto ao elemento russo da equipe, Kolya, constantemente hostilizado por Tirpitz. A desconfiança não é infundada: logo, descobre-se que Kolya é agente-duplo e está comprometido com os interesses da SMERSH (agora, uma subseção da segurança russa, denominada “Departamento V”). Os velhos inimigos de Bond na Cortina de Ferro permanecem na ativa, e encomendam a Kolya e a Von Glöda, a cabeça de 007.
Em um desfecho movimentado, Kolya conduz Bond ao Palácio de Gelo e o entrega ao líder da EANS (descontand-se de sua altura privilegiada, Von Glöda não é um vilão excepcional, física ou psiquicamente; sua fealdade e loucura são todas “interiores”, como as de Emílio Largo e Scaramanga). Garnder também reserva uma surpresa para o final. Rivke, a maior aliada de 007 nesta missão, é na verdade, vilha de Von Glöda e sua sucessora no regime nazista que o Conde quer inaugurar. Esta reviravolta é mais bem-sucedida que a revelação da identidade de “Blofeld” em “Serviços Especiais”, talvez porque o rompimento com o esquema narrativo de Fleming permitia ao autor misturar melhor os ingredientes da história e confundir o leitor. Alertados por Bond e por Brad Tirpitz, aviões Fencer da OTAN atacam e destroem o esconderijo da EANS no Ártico, e o vilão é morto pelos mocinhos em um tiroteio, na eminência de fugir para paris.
O tom desta novela diz muito sobre os enredos Bondianos publicados por Gardner em anos subsequëntes. Ainda que com eventuais concessões à foruma original (notadamente, em “Scorpius” e “Garra-Quebrada”), os livros abdicaram do esquema narrativo de Fleming, obtendo um resultado ambíguo: por um lado, são fortes em caracterizações e propõem situações inéditas, como a constante incerteza de Bond quanto à lealdade de seus parceiros de missão e até de seus superiores. Nas novelas de Gardner, ninguém está acima de qualquer suspeita: a ética do próprio “M” é questionada em “Sem Acordos, Mr. Bond”.
O aspecto negativo dessa manobra é que as tramas são menos intrigantes, os elementos superlativos e fantásticos, importantíssimos nos enredos de Fleming e Benson, são praticamente relegados a segundo plano. Não há dúvida de que a Era Gardner elevou os Bonds literários a um patamar mais “respeitável” como literatura. Mas é discutível se atingiram seu objetivo básico: entreter.
“Sexo, Glamour & Balas” de Eduardo Torelli.